Por Andrea Domínguez *
Fotos: Walter Mesquita
Descriminalizar o porte da maconha para consumo pessoal e enviar os usuários ao médico ao invés de para a cadeia. Foi o que pediram os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, e César Gaviria Trujillo, da Colômbia, em nome da Comissão Latino-americana de Drogas e Democracia, durante encontro no Rio em que foi lançada a declaração que propõe uma nova política de drogas para a região. Apesar de não estar presente no evento, o ex-presidente mexicano Ernesto Zedillo também faz parte da comissão e apoia a declaração.
O documento é uma resposta ao que a comissão considera o fracasso da política de repressão às drogas liderada pelos Estados Unidos e respaldada pela ONU. “Uma avaliação realista desta política mostra que não houve redução da produção nem do consumo de drogas. Estamos mais longe do que nunca do objetivo de erradicar as drogas ilícitas”, assegurou Cardoso.
“O mais grave é que o enfoque proibicionista tem gerado problemas humanos e sociais como o aumento da violência e da corrupção na região”, completou. A declaração será apresentada durante a reunião da Comissão de Drogas Narcóticas da ONU, em março, em Viena, na Áustria.
No México, por exemplo, 5.300 pessoas perderam a vida no ano passado em conseqüência da violência gerada pelo confronto entre traficantes - um aumento de 117% no número de homicídios em relação ao ano anterior, segundo dados da Procuradoria Geral da República daquele país.
Cardoso esclareceu que a proposta da comissão de descriminalizar a maconha, no entanto, não implica em complacência com as drogas e que esta medida teria que ser acompanhada de um forte componente preventivo, através de campanhas informativas e repressão ao crime organizado. “Reafirmamos que as drogas são prejudiciais às pessoas e à sociedade e a nossa principal meta é reduzir este dano, mas acreditamos que a forma de fazer isso é tratar a questão como assunto de saúde pública”, defendeu Cardoso.
Na América Latina já existem iniciativas nesse sentido. O Brasil aprovou em 2006 uma lei que descriminaliza o porte de maconha par uso pessoal. Na Colômbia, não só é permitido o porte de doses de maconha para consumo pessoal como de qualquer droga, incluindo a cocaína, depois que uma Corte Constitucional do país defendeu o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. A Argentina está debatendo o tema e, fora da região, os pioneiros na descriminalização do consumo são Suécia, Holanda, Austrália, Canadá e Nova Zelândia.
A maconha é a droga mais consumida no mundo, com 160 milhões de usuários. É produzida por 82 países e traficada em 146 nações. Os dados são do último Relatório Mundial sobre Drogas formulado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), de 2008, que reconhece o aumento do consumo durante os últimos anos na América Latina.
América Latina tem direito
O ex-presidente colombiano César Gaviria, que co-preside a comissão junto com seus colegas brasileiro e mexicano, afirmou que a descriminalização é apenas um primeiro passo na direção de uma política de drogas mais efetiva para diminuir o consumo.
“Descriminalizar é apenas parte da solução”, afirmou. “É preciso fazer o que os europeus estão fazendo com os cidadãos que desenvolveram o vício: tratando-os como um problema de saúde pública e ajudando para que não se transformem em criminosos”.
Em uma crítica aberta à política de repressão às drogas praticada pelos Estados Unidos, Gaviria afirmou que o país é um dos únicos que continuam encarcerando usuários de drogas. “Nós acreditamos que esta não é a resposta”, completou.
Durante os últimos dez anos, os processos relativos às drogas na Justiça Federal norte-americana triplicaram sobrecarregando o sistema penal daquele país. Segundo a organização norte-americana Drug Policy Alliance, cerca de 1,5 milhão de pessoas são presas por ano por violação da lei anti-drogas - 40% delas vão para a cadeia por posse de maconha.
Outro ponto fraco da política norte-americana com relação às drogas ilícitas são os US$4,9 bilhões que o governo colombiano recebeu do governo dos Estados Unidos como parte do Plano Colômbia de combate ao narcotráfico e que não conseguiu diminuir o fluxo de drogas do país andino para os Estados Unidos. A informação está em um relatório do Comitê de Relações Exteriores do Senado Federal norte-americano solicitado pelo então presidente do órgão, Joseph Biden, eleito vice-presidente do país.
Avanços no bloco europeu
No que se refere aos avanços alcançados por alguns países europeus graças à implementação de uma política de redução de danos, Gaviria também criticou o fato de que naquela região o consumo não diminuiu. O ex-presidente atribui o fato à falta de um trabalho consistente de prevenção e informação entre os usuários de drogas.
O ex-presidente da Colômbia afirmou, ainda, que a América Latina tem direito de exigir dos Estados Unidos uma revisão da política proibicionista que não está dando resultados e afeta a região. “A comissão está propondo que a América Latina tome uma postura independente em termos de consumo”, afirmou. Segundo Gaviria, a região está fazendo um grande trabalho em termos de apreensão de cocaína e é chave para a política norte-americana. “Não existe política de drogas sem a cooperação do Peru, da Colômbia, da Bolívia e de todos os outros países. Por isso, temos o direito de debater esta política e o primeiro passo é pedir que os Estados Unidos se abram para discussão”, exigiu.
A eleição de Barak Obama parece trazer novos ares à questão das drogas ilícitas no continente americano. Um sinal que indica que a administração de Obama não está longe de reavaliar sua política de drogas é a nomeação do novo Czar anti-drogas Gil Kerlikowsk, atual chefe de polícia de Seattle, uma cidade que se caracteriza pelo seu vanguardismo: introduziu a política de redução de danos e o uso da maconha com fins médicos é legal há dez anos.
Além de fazer lobby diretamente com os Estados Unidos e continuar com a promoção do debate junto a outros governos, a comissão espera influenciar as discussões que acontecerão durante as sessões da Comissão de Drogas Narcóticas da ONU. Apesar de os rascunhos preparados para essa reunião não contemplarem grandes mudanças na política mundial de drogas, Gaviria garantiu que “não dá para continuar achando que as drogas vão desaparecer, porque isso não é realista. É preciso adotar mudanças como, por exemplo, a redução de danos”.
“Em muitos países, o narcotráfico está gerando uma crescente criminalização da política e uma politização do crime que ameaçam as instituições democráticas”, afirmou Cardoso. O ex-presidente brasileiro frisou que é necessário primeiro quebrar o tabu que bloqueia o debate sobre a questão da droga em nossas sociedades. “Precisamos, com prudência e coragem, explorar caminhos alternativos que levem a políticas mais seguras, humanas e eficientes”, afirmou.
Ao comentar sobre a importância da prevenção ao consumo de drogas ilícitas, o ex-prefeito de Bogotá, Antanas Mockus, reconhecido pelos seus exercícios pedagógicos na Colômbia para reeducar os cidadãos em questões de convivência, disse que não se pode deixar nas mãos da polícia o controle do consumo de drogas.
Para Mockus, que também faz parte da Comissão Latino-americana de Drogas e Democracia, um jovem não deixa de consumir drogas porque a lei proíbe, mas porque sua consciência lhe diz isso e isto é conquistado através de informação e controle social. “Não se ganha nada proibindo o uso de drogas se esta ação, apesar de proibida por lei, é aprovada pela sociedade”, explicou.
Também estavam presentes ao encontro o ex-ministro da Justiça e Relações Exteriores do Peru, Diego García Sayán; a juíza e integrante da Comissão de Análise de Políticas de Drogas da Argentina, Patricia Llerena; o general Alberto Cardoso, ex-ministro-chefe de Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; e João Roberto Marinho, das Organizações Globo.
Cinco passos para a mudança
1. Transformar os usuários que hoje compram drogas no mercado ilegal em pacientes do sistema de saúde
2. Avaliar com um enfoque de saúde pública e fazendo uso da mais avançada ciência médica a conveniência de descriminalizar o uso da maconha
3. Reduzir o consumo de drogas através de campanhas inovadoras e informativas de prevenção que possam ser compreendidas e aceitas por todos, mas em particular pelos jovens que constituem o maior contingente de usuários de drogas
4. Focalizar as estratégias repressivas no combate implacável ao crime organizado, priorizando a luta contra os efeitos mais nocivos do mesmo: a violência e a corrupção. Lavagem de dinheiro, tráfico de armas e controle de territórios.
Reorientar as estratégias de repressão ao cultivo de drogas através da combinação de esforços de erradicação com programas de desenvolvimento alternativo.
*Jornalista do portal Comunidade Segura (www.comunidadesegura.org)